A rede, paraíso e selva: é possível regulá-la?
Para uma geração em que a internet é quase como uma segunda pele, difícil imaginar que esta rede que hoje parece infinita começou a operar fora do círculo militar norte-americano interligando apenas quatro instituições. Em janeiro de 1970, a rede computacional ARPANET foi testada para conectar pesquisadores na Universidade da Califórnia em Los Angeles, na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, na Universidade de Utah e no Stanford Research Institute. Deu certo. Em janeiro de 1971, havia 13 computadores na rede. Em abril do ano seguinte, outros dez haviam sido incluídos no círculo. Em janeiro de 1973, a ARPANET contava com 38 computadores ligados ao seu sistema.
Menos de 50 anos depois, a internet deixou de ser um instrumento local para se tornar uma ferramenta que dissipa fronteiras. Não são apenas aparelhos que estão interligados. Vidas são salvas em cirurgias realizadas remotamente, regimes ditatoriais são derrubados por internautas articulados pelas redes sociais, famílias se veem a milhares de quilômetros de distância com o esforço limitado a poucos cliques.
A internet não é mais apenas usada. Ela também é vestida, em aparelhos como o Google Glass e o Apple Watch. Em breve, as informações dos nossos corpos serão registradas para garantir a otimização de recursos. A “Internet das coisas” tem o potencial para mudar o mundo, numa revolução talvez mais profunda que a causada pela própria Internet, afirma Kevin Ashton, especialista do Massachussets Institute of Technology (MIT) que cunhou o termo.
O crescimento acelerado traz também inquietações e armadilhas. Quando se abriu para o mundo, a internet carregava em seu DNA preceitos como a inovação e a liberdade. Hoje, dados privados são monitorados, registrados e roubados, e a rede neutra é ameaçada por interesses comerciais que muitas vezes desprezam o direito do internauta. Como, então, lidar com os cerca de 50 petabytes (ou 50,000,000,000,000,000 bytes) de dados disponíveis na web, entre fotos, textos, vídeos e afins, de acordo com estimativa de Ashton?
A regulação não é apenas necessária, mas também possível, como provou o Brasil ao tornar realidade uma legislação pioneira que estabelece os direitos e deveres de internautas e empresas que atuam na rede
A resposta veio do físico britânico Tim Berners-Lee, criador da World Wide Web, o famoso WWW. A internet como a conhecemos precisa de lei para não ser desvirtuada. A regulação não é apenas necessária, mas também possível, como provou o Brasil ao tornar realidade uma legislação pioneira que estabelece os direitos e deveres de internautas e empresas que atuam na rede.
O Marco Civil da Internet, sancionado em 23 de abril de 2014, chegou para deixar claras as regras, oferecendo segurança jurídica e pondo fim a abusos aos quais estavam sendo submetidos os usuários da internet no país, muitos sem sequer saber. A lei, considerada por especialistas um exemplo para o mundo, tem três pontos como seus pilares: o respeito à privacidade do internauta, a garantia da liberdade de expressão na rede e a preservação da neutralidade da rede.
O RESPEITO À PRIVACIDADE
Alvo de investigação na Europa, onde atuava, a empresa Phorm encontrou no Brasil um mercado abundante, onde poderia dar prosseguimento às suas operações. Aliou-se a duas empresas telefônicas, também provedoras de conexão à internet, e garantiu, assim, o acesso aos registros de atividades dos clientes: no que clicavam, fotos que visualizavam, vídeos a que assistiam, buscas feitas na rede… Tudo.
Estas informações eram então usadas para marketing direcionado, um mercado que paga caro por informações precisas. Afinal, quanto vale para uma empresa que vende artigos esportivos, por exemplo, saber exatamente que produto oferecer a tal pessoa? Consumidores do provedor de conexão eram vítimas de um flagrante desrespeito à sua privacidade. Os clientes sequer tinham conhecimento de que seus dados eram repassados a terceiros.
A situação pode se agravar. Imagine uma pessoa que, preocupada com sintomas que vem sentindo, procura na internet informações sobre determinada doença. Recorre, então, a um plano de saúde. Mal sabe este internauta que a empresa já tem à disposição seus dados de navegação, pois fez um acordo comercial com o provedor. A seguradora, então, exige exames que verifiquem a existência da doença pesquisada, antes de estabelecer o preço do plano.
O Marco Civil proíbe este tipo de prática, assegurando o sigilo da navegação do internauta e o direito à inviolabilidade da intimidade e da vida privada. O usuário tem reconhecido em lei o direito a não ter seus dados repassados a outras pessoas sem seu consentimento expresso.
A lei faz, também, uma importante distinção sobre a quais dados podem ter acesso os provedores de conexão –aqueles que nos conectam à internet– e os provedores de aplicações –sites, serviços, blogs e redes sociais–, dando um basta ao acesso indiscriminado. Os provedores de conexão não podem mais registrar e armazenar o que seus clientes fazem enquanto estão conectados. Devem apenas guardar, por um ano e em ambiente protegido, a data e a hora em que determinado IP se ligou e desligou da rede.
Da mesma forma, os provedores de aplicação estão autorizados apenas a guardar as informações de acesso a seus serviços. O Twitter, por exemplo, só pode saber o que um internauta fez dentro da sua rede social. Provedores de conexão e provedores de aplicação não podem compartilhar entre si as informações sobre usuários, a não ser se requisitado por ordem judicial para auxiliar investigações.
A GARANTIA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Antes do Marco Civil da Internet, a internet no Brasil vivia num estado de apreensão. Imagine a situação: um internauta, ao ler uma notícia sobre um político num site, deixa registrado um comentário crítico sobre a atuação deste parlamentar. Ao tomar conhecimento das palavras do internauta, o político descontente envia um e-mail ao site exigindo que o comentário seja retirado imediatamente. Caso contrário, processará o site. Temeroso de sofrer um processo judicial, o site retira apressadamente o comentário, que sequer era ofensivo ou calunioso; apenas demonstrava uma crítica à atuação do parlamentar.
Esta espécie de censura privada era aplicada frequentemente, impedindo internautas de se manifestarem livremente. O Marco Civil determina as responsabilidades do caso. Com a lei, fica estabelecido que o provedor de aplicações só pode ser responsabilizado civilmente por conteúdo postado por terceiros se descumprir uma ordem judicial determinando a retirada do comentário em questão. Estes casos poderão ser julgados em Juizados Especiais, para garantir a agilidade necessária na apreciação. Fica garantido, assim, o respeito à palavra e ao contraditório.
Até que a Justiça se pronuncie, o provedor de aplicações tem, portanto, segurança para manter publicado um conteúdo que não julgue ser infringente. O que não quer dizer que o site, blog ou rede social não possa continuar retirando, por conta própria, comentários que considere inapropriados, ofensivos ou desrespeitosos. Se um internauta fizer apologia ao crime ou escrever um comentário racista, o provedor de aplicações não precisa esperar o aval da Justiça para retirar o conteúdo.
A PRESERVAÇÃO DA NEUTRALIDADE DA REDE
Em 2004, estudantes de Harvard decidiram lançar uma rede social que conectasse os alunos de uma das mais prestigiadas instituições de ensino do mundo. O experimento foi gradualmente sendo expandido para outras faculdades do entorno, até ser aberto para estudantes do ensino médio e, eventualmente, para qualquer pessoa no mundo. Hoje, o Facebook é a rede social mais popular do planeta, com 1,4 bilhão de usuários ativos. O modesto empreendimento só se tornou o que é hoje porque encontrou na web a neutralidade da rede, princípio crucial para a manutenção de uma rede livre e aberta à inovação.
A neutralidade da rede determina que os dados que circulam pela internet sejam tratados sem discriminação por conteúdo, origem, destino ou serviço. Ou seja, não importa se acessamos um grande site de notícias ou um blog experimental, os pacotes de dados transmitidos nesta operação devem ser tratados com isonomia. O fluxo democrático permite que pequenos endereços compitam em pé de igualdade com grandes negócios, oferecendo oportunidades de crescimento.
Aos poucos, nações debruçam-se com mais afinco sobre a necessidade da criação de leis para evitar que os princípios da internet como a conhecemos sejam desfigurados por interesses comerciais ou governamentais
Provedores de conexão, no entanto, queriam mudar este cenário. A ideia era poder oferecer aos provedores de aplicação interessados um acesso mais rápido aos internautas. Um grande portal de notícias, portanto, compraria o acesso privilegiado aos clientes deste provedor, fazendo com que seus pacotes de dados fossem colocados à frente dos demais que esperam na fila. É como se uma empresa alugasse sirenes de emergência para que carros pudessem passar os outros no trânsito. Os beneficiados seriam aqueles que dispõem de mais verba. Ficariam eternamente na fila, carregando a passos lentos na tela do usuário, provedores de aplicações menores, como um blog independente. A quebra da neutralidade neste caso retiraria do usuário qualquer possibilidade de escolha. Seria o fim da livre concorrência. Adeus, inovação.
Outro quadro tenebroso pintado pelos provedores de conexão retrata a internet como um universo fragmentado, ao invés da rede interconectada que temos hoje. A intenção das empresas era cobrar separadamente por cada tipo de serviço acessado, tornando a web uma espécie de TV por assinatura. Sob o falso pretexto de democratizar o acesso, o plano básico ofereceria ao usuário, por uma quantia mais modesta, apenas o acesso a e-mails. Se precisasse fazer uma busca, um valor seria acrescido. Se quisesse acessar redes sociais, teria que incluir no plano. Para ver vídeos, mais uma taxa extra. Para usar os serviços de Voz sobre IP (VoIP), serviço concorrente dos provedores de conexão e empresas de telefonia, custaria um absurdo. A internet como a conhecemos, sem fronteiras, se tornaria um privilégio apenas para os que podem pagar, abrindo a porta para a exclusão digital.
Por contrariar interesses de poderosas empresas, a aprovação da neutralidade da rede foi o ponto do Marco Civil que mais encontrou resistências na Câmara. O embate foi duro, mas jamais poderíamos permitir quaisquer brechas a um princípio tão fundamental.
ENVOLVIMIENTO DA SOCIEDADE, UM GRANDE ALIADO
As conquistas do Marco Civil da Internet foram aclamadas. Aprovamos no Brasil uma das leis mais avançadas do mundo sobre internet, na avaliação de especialistas como Vint Cerf, um dos fundadores da internet, e Berners-Lee, pai da web. Tal conquista contou com um ingrediente fundamental: a participação intensa, em todo o processo, da sociedade civil.
A lei foi um pedido da sociedade, que participou da elaboração do projeto enviando sugestões até pelo Twitter. Durante a tramitação na Câmara, a pressão exercida sobre parlamentares contrários ao texto permitiu que os princípios fossem respeitados e aprimorados. Hoje, o parlamento da Itália replica o processo de elaboração brasileiro na criação de seu próprio Marco Civil, que deve ser proposto à União Europeia. Após a definição do nosso país, os Estados Unidos conseguiram assegurar o respeito à neutralidade da rede, discussão que encontra barreiras cada vez menos intransponíveis ao redor do globo.
Aos poucos, nações debruçam-se com mais afinco sobre a necessidade da criação de leis para evitar que os princípios da internet como a conhecemos sejam desfigurados por interesses comerciais ou governamentais. Seria ingenuidade achar que, numa série de regras, conseguiríamos abarcar a imensidão que é esta grande rede. O Marco Civil, como outras regulações, apresenta pontos balizares, a partir dos quais podem e devem ser elaboradas legislações mais direcionadas, com a Lei de Proteção de Dados Pessoais.
O Legislativo dificilmente acompanhará a velocidade da internet. Este é um dos desafios. Mas, com ações pontuais e obstinadas, pautadas sempre no diálogo aberto à sociedade e no respeito aos valores que constituem a internet, vamos continuar trabalhando para que a rede seja um espaço livre, democrático, seguro e aberto à inovação.