Patria ou muerte? Patria
São 11 da noite em Havana. O dia não foi propriamente de sonho para um turista que visita Cuba pela primeira vez, que andou meses a poupar para lá ir e tudo o que pedia era bom tempo. A chuva caiu copiosamente durante toda a tarde e o mar das Caraíbas mais parecia o da Europa do norte. Revolto, com vontade de engolir toda a terra que lhe aparecesse à frente, indiferente aos turistas que atravessaram o atlântico à procura de uns dias de descanso. Depois do jantar restava-me o consolo das diosas de carne que me aguardavam no paraíso sob as estrelas. Os bilhetes não foram fáceis de arranjar e o espetáculo no Tropicana, um dos cabarés mais antigos e mais conhecidos de Havana, prometia ser inesquecível. “Não há luz, o espetáculo desta noite foi cancelado”, disseram-me à entrada. A frente fria que chegara naquela tarde a Havana deixou meia cidade às escuras. Não era um furacão, nem tão pouco uma tempestade tropical, era apenas chuva e vento, mas foi o suficiente para provocar estragos numa rede elétrica débil e numa cidade onde os geradores existem, mas ou não funcionam, ou não conseguem resolver tudo. Era o meu primeiro choque de frente com o embargo que dura há décadas. Dei instruções ao taxista para dar meia volta e voltar para trás. Regresso ao Hotel. Desisto. A minha noite acabava ali.
Um dos erros mais comuns em política é considerar que ela se basta a si própria. Que a partir de um guião ideológico, seja ele qual for, se consegue construir um Estado
Lembrei-me desta noite quando vi a fotografia do Air Force 1 a chegar a Havana. A imagem é notável, não pela beleza, mas pelo simbolismo que carrega. Tudo aquilo é História. As casas de lata, os carros de museu, o emaranhado de cabos elétricos espalhados de forma anárquica pela cidade, as pessoas de olhos postos no céu, o avião que traz um Presidente dos EUA a Cuba, 88 anos depois. Os 150 quilómetros mais longos da história (é a distância de Cuba aos EUA) tornaram-se, de repente, mais curtos. Mas afinal, o que mudou? Porquê tanto tempo? Tanto sofrimento? O que mudou no mundo, nos Estados Unidos e em Cuba para tudo se tornar aparentemente tão simples? Mudaram os protagonistas da História.
Um dos erros mais comuns em política é considerar que ela se basta a si própria. Que a partir de um guião ideológico, seja ele qual for, se consegue construir um Estado, independentemente das pessoas e dos protagonistas que estão à frente desse Estado. Que mais importante que as pessoas, são os processos. Quem assim pensa tende a sonhar que um dia a História lhe dará razão. Que todos aqueles que discordam deste caminho são apenas limitados, perigosos reacionários que desejam o poder. Foi este tipo de pensamento que levou a vários conflitos ao longo da História. Que provocou angústia, sofrimento e morte. Que atrasou civilizações, que empobreceu Estados e tornou o mundo mais desigual.
Patria ou muerte. A frase fez história e ficou na História não como uma pergunta, mas como uma escolha que era dada aos cubanos
No caso de Cuba não há inocentes. Se a luta de um povo pela soberania é tão legítima quanto a luta pela vida, a arrogância de quem se acha dono da verdade, persegue, prende e mata o pensamento livre, pode destruir por completo qualquer vitória. Mesmo que seja uma vitória contra a ditadura. Foi o que aconteceu em Cuba. A troca de um ditador por outro. Mas há outro tipo de arrogância. A de quem julga que o poder económico é um cheque em branco na política, interna e externa. A arrogância da chantagem, do bloqueio, da pressão, a arrogância de querer obrigar um povo a sublevar-se. A arrogância de um Estado (os EUA) que se aliou a Fulgencio Batista, um ditador de quem o mundo já quase não se lembra, mas que os cubanos nunca esquecerão. O que mudou em Cuba, o que mudou nos Estados Unidos, foram os protagonistas.
O processo não foi, não é e não será fácil. Basta pensar que em 1977, Jimmy Carter deu o primeiro passo, com o retomar das relações diplomáticas, ainda que de forma muito limitada, e foram precisos mais 37 anos para chegarmos a 2014 e ouvirmos Barack Obama anunciar a reabertura do diálogo diplomático entre os dois países, que permitiu, entre outras coisas, o retomar dos voos regulares entre Cuba e os EUA. Famílias reencontraram-se, abraçaram-se e beijaram-se. Pessoas, como nós, que nunca foram como nós. Em fim de mandato, Barack Obama quis deixar mais uma marca na História, indiferente ao que o Senado americano pensa, consciente de que a História é isso mesmo, história. Não pode ser apagada, não deve ser ignorada, mas tem sempre uma página em branco à espera que alguém escreva mais alguma coisa. Por outro lado, em Cuba, há um Castro que é diferente do irmão. Muito diferente? O suficiente para que um Presidente Americano possa visitar o país 88 anos depois e a embaixada possa voltar a abrir portas. Não é coisa pouca. O amargo de boca que Fidel Castro não conseguiu, nem quis, disfarçar depois de ter visto Obama ao lado do irmão, prova isso mesmo. “Nós não precisamos que o império nos dê nada”, escreveu o ex-presidente cubano no Granma, o jornal oficial do partido comunista cubano.
Patria ou muerte. A frase fez história e ficou na História não como uma pergunta, mas como uma escolha que era dada aos cubanos. Ou somos livres ou mais vale que a morte nos leve. Os cubanos fizeram a escolha certa, mas foram enganados. Escolheram a pátria, mas nunca foram verdadeiramente livres. Houve quem quisesse continuar essa luta pela liberdade, e quem o tenha feito com galhardia, sem medo da morte mesmo que fosse esse o preço a pagar. Patria ou muerte? Acrescentemos-lhe um ponto de interrogação para que, perante a pergunta, possamos encontrar a resposta certa. Para que, perante as novas circunstâncias, possamos finalmente trazer Cuba para o século XXI e acabar com o gelo de uma guerra que há muito deixou de fazer sentido. Patria ou muerte? Patria. Porque a morte só faz sentido quando acaba a esperança e não há alternativa. Porque em democracia, há sempre alternativa e a esperança não tem prazo de validade.